ENSAIO SOBRE O ALCANCE DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL

O artigo que a União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP) e a Sociedade Portuguesa de Direito Internacional (SPDI)

jonal

JONAS GENTIL⃰
[jonasgentil@hotmail.com]
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (FDUNL)
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de São Tomé e Príncipe (UL-STP)
Presidente do Instituto do Direito e Cidadania de São Tomé e Príncipe (IDEC/STP)
Membro do Instituto de Direito de Língua Portuguesa (IDILP)
Investigador do Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS) da UNL

A liberdade de expressão não se traduz numa liberdade qualquer, é sim, a Magna das Liberdades fundamentais para a construção de uma sociedade democrática e igualitária, tanto na sua dimensão individual como coletiva, na perspetiva de que a todos é (ou deve ser) garantido o direito de propagar, procurar ou receber ideias e informações. O princípio da liberdade de expressão é tão relevante que mereceu, ao longo da sua particular trajetória, um lugar de destaque em vários instrumentos jurídicos internacionais.
Tendo na sua génese os ideais iluministas, a liberdade de expressão, aparece originariamente plasmado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Constituição Francesa de 1793 (artigo 11.º e artigo 7.°, respetivamente). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no seu artigo 11.º reconhece que a livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; [assim sendo,] todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.
As normas sobre liberdade de expressão encontram-se ainda consagradas noutros diplomas internacionais, a saber, Declaração Universal dos Direitos
⃰ O autor agradece ao Januário Jhúnior G. Ceita, Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, Vice-presidente do Instituto do Direito e Cidadania de São Tomé e Príncipe e Diretor-adjunto do Anuário de Direito de São Tomé e Príncipe, pela pronta revisão a uma versão inicial do texto que agora se publica. Este texto é uma versão do artigo de opinião “Ensaio sobre o alcance da liberdade de expressão” publicado aos 12 de setembro de 2016 pela União Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP) e pela Sociedade Portuguesa de Direito Internacional (SPDI).
Humanos de 1948 (artigo 19.º), Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 (artigo 4.º), Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950 (artigo 10.º), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 19.º), Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (artigo 13.º) e, mais recentemente, na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981 (artigo 9.º).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, por exemplo, estabelece que toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha (parágrafo 1 do artigo 13.º). No sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos a liberdade de expressão não admite a censura prévia, apenas está contemplado as exceções descritas nos parágrafos 4 e 5 do artigo 13.º da referida Convenção Americana de 1969 e que se reportam aos casos de proteção moral da infância e da adolescência; a propaganda em favor da guerra; apologias ao ódio racial, nacional ou religioso que constituam incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime e a violência.

Ao contrário do artigo 13.º da Convenção Americana de 1969, a Convenção Europeia de 1950 (parágrafo 1 do artigo 10.º) não estabelece quaisquer restrições à liberdade de expressão, contudo, em casos muito particulares o princípio poderá estar condicionado a uma autorização prévia por parte dos Estados. Todavia, do que resulta destes dois diplomas regionais podemos concluir que o consenso observado nos órgãos de direitos humanos, tanto da América como da Europa, põe em evidência de que a proteção da liberdade de expressão é indiscutivelmente um elemento indispensável e fundamental da democracia e se encontra perfeitamente fundamentada no direito internacional.
Por seu turno, o artigo 9.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981, diferentemente do que acontece com outras disposições dos sistemas de proteção dos Direitos Humanos, não se traduz tão abrangente na estrita medida em que apenas expressa que todo indivíduo tem direito à informação e de difundir as
suas opiniões. Nesta perspetiva e, no âmbito deste instrumento jurídico africano, a Comissão Africana para os Direitos do Homem e dos Povos, reunida na sua 32.ª Sessão Ordinária, em Banjul, Gâmbia, de 17 a 23 de outubro de 2002, em reafirmação ao artigo 9.º elaborou a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África onde se vem estabelecer que a liberdade de expressão e informação, incluindo o direito de procurar, receber e fornecer informação e ideias, de forma oral, escrita ou impressa, sob a forma de arte, ou através de qualquer outra forma de comunicação, incluindo a travessia de fronteiras, é um direito fundamental e inalienável e uma indispensável componente da democracia e, portanto, todos devem ter oportunidade igual para exercer o direito à liberdade de expressão e acesso à informação sem discriminação. Neste mesmo diploma ficou ainda plasmado que ninguém deve ser [ou estar] sujeito à interferência arbitrária relativamente à sua liberdade de expressão, pois quaisquer restrições da liberdade de expressão devem ser previstas por lei, servirem um interesse legítimo, serem necessárias e fazerem parte de uma sociedade democrática. Assim, a liberdade de expressão impõe uma obrigação por parte das autoridades de tomarem medidas positivas para promoverem diversidade, o que inclui, entre outras coisas:

i) disponibilidade e promoção de um leque de informação e ideias para o público;

ii) acesso pluralístico aos media e a outros meios de comunicação, incluindo grupos vulneráveis ou marginalizados, tais como mulheres, crianças e refugiados, assim como grupos linguísticos e culturais;

iii) a promoção e proteção de vozes africanas, incluindo através dos media em línguas locais; e

iv) a promoção do uso de línguas locais em assuntos públicos, inclusive nos tribunais.

Como é bom de ver, a liberdade de expressão pode ser entendido como o índice mais seguro da qualidade da cultura política de um Estado (ou mesmo de uma comunidade) e desta forma, não se manifestará problemática a afirmação de que esta liberdade tem um valor imensurável. Nestes termos, ao Estado caberá somente garantir as liberdades civis dos indivíduos e não regulá-lo, uma vez que quando a liberdade de expressão é limitada ou censurada põe em causa o direito dos indivíduos pois, a liberdade de expressão é o pilar e o corolário essencial ou, conforme estabelecido na Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão em África de 2002, maxime a Carta Africana de 1981, uma indispensável componente da democracia.

Todavia, entendemos que o valor deste princípio fundamental não é (e não pode ser) absoluto e incontestável no sentido em que, muitos comportamentos podem implicar prejuízos a outrem (terceiros), nomeadamente para a sua vida, dignidade social ou privacidade, integridade física, propriedade, isto para mencionar apenas alguns dos bens jurídicos que podem ser ameaçados pelo exercício arbitrário da liberdade de expressão. Em termos gerais, viver em sociedade implica necessariamente um compromisso permanente, neste caso, entre a liberdade de expressão e a tutela dos bens ou interesses que podem vir a ser afetados ou ofendidos pelo exercício abusivo desta liberdade. Entendemos, grosso modo, que é por esta mesma razão que se releva a importância das restrições à liberdade individual e que constitui, certamente, a justificação basilar da existência de uma organização política de base territorial, o Estado, cujas funções fundamentais traduzem-se em criar, aplicar e executar leis que limitam ou restrinjam a liberdade dos indivíduos de se comportarem como lhes aprouver pois, existem bens, que pela sua natureza e, em conformidade com o que resulta fundamentalmente das exceções plasmadas na Convenção Americana de 1969 e noutras, devem ser previamente salvaguardados.

Assim, a liberdade de expressão, tal como qualquer outra manifestação da liberdade, deve estar sujeita aos limites prescritos pela ponderação circunstancial de bens ou interesses de sentido oposto. É essa a forma de pensar que deve estar subjacente à afirmações, manifestações, comportamentos prejudiciais e, pondo em evidência o caso das ofensas religiosas, consagrado como uma das exceções na Convenção Americana de 1969, assinala-se relevante salientar que a liberdade de expressão não pode assumir uma extensão que compreenda a blasfémia, o insulto às convicções ou sentimentos religiosos dos membros de uma certa crença. Em sentido oposto, alguns até entendem que a todos deve ser garantido a liberdade para falar o que quiser, porém, precisam responder legalmente por suas palavras, principalmente nos casos em que houver calúnia, injúria, e/ou difamação. Neste sentido, consideram que a proibição prévia de certos conteúdos e objetos, e a tipificação legal de um insulto específico não deveriam figurar na lei pois o Estado não pode assim definir previamente quais opiniões são legítimas de se ter na medida em que a essência da liberdade de expressão é também aprender a conviver com conteúdos odiosos ou desagradáveis pois ninguém tem o direito a não ser ofendido.

No plano político propriamente dito, não estaríamos a ser imprecisos ao assumirmos publicamente que a política respeita ao modo como tomamos decisões que a todos vinculam sobre a vida que estamos condenados a partilhar, pela nossa condição de seres que coexistem e coabitam num espaço finito e num tempo determinado. A liberdade de expressão, sobretudo no que se refere à política e questões públicas traduz-se no suporte vital de qualquer democracia. Os governos democráticos não controlam o conteúdo da maior parte dos discursos escritos ou verbais (e, a nosso ver, por mais que sintam tentados não o devem fazer para o bem da democracia). Neste sentido, conforme disse John Milton em defesa da liberdade de expressão no seu discurso proferido no Parlamentos inglês em 1644, dêem-me acima de todas as liberdades a liberdade de saber, de falar e de discutir livremente, de acordo com a minha consciência. Assim sendo e por esta razão, geralmente nas democracias existem (e, devem sempre existir) muitas vozes que exprimam ideias e opiniões diferentes e até contrárias. Para uma grande parte dos teóricos da democracia, um debate livre e aberto tem como consequência lógica a adoção da melhor das opções (ou melhor, que esta seja pelo menos levada em consideração) o que implica necessariamente a redução de probabilidades de se enveredar por caminhos menos seguros. Note-se que a democracia depende e assenta numa sociedade civil educada e bem informada e cujo acesso à informação permite ao cidadão participar tão plenamente quanto possível na vida pública da sua sociedade e, considerando ainda que a democracia depende igualmente de acesso mais abrangente possível a ideias, dados e opiniões não sujeitos a censura, só deste modo o cidadão poderá ser capaz de criticar cabalmente funcionários do governo ou políticas insensatas e tirânicas. Para que um povo livre possa melhor governar a si mesmo, é necessário que este possa ser livre para se exprimir – podendo fazê-lo de uma forma aberta, pública e repetidamente; seja ela oral ou escrita. E, isto porque, como já vimos, podemos perfeitamente coexistir numa esfera pública em que se disputam afirmações e opiniões contrárias sobre os mais variados assuntos, sem que haja qualquer necessidade de alguma autoridade decretar qual a posição mais aceitável.

No entanto, existem vários tipos de regimes políticos, que são as formas como certas comunidades humanas optaram por se governar, ou seja, como adotam
decisões que a todos vinculam. Nos regimes democráticos, como é o caso dos países lusófonos, os destinatários das decisões políticas são também, direta ou indiretamente, os seus autores legislativos. Assim acontece porque a democracia se baseia no princípio da igualdade política, segundo o qual a todos os cidadãos é garantido igual direito de participar na formação da vontade coletiva que irá ordenar e estabelecer as relações entre si. Contudo, como é improvável que se consiga obter a unanimidade entre os cidadãos sobre as questões da vida coletiva, e também é impossível suspender a decisão política até que se venha a formar um putativo consenso, a decisão democrática repousa segundo o nosso sistema no critério da maioria, nos termos do qual é dado igual peso aos juízos de todos os cidadãos onde se elege como critério de decisão aquele que reunir mais de metade do número de votos. O princípio da liberdade de expressão deve assim ser, como acontece entre nós lusófonos, protegido pela constituição de uma democracia, impedindo desta forma que a secção legislativa e executiva dos governos possam impor, por essa via, a censura.

Ainda no que diz respeito a expressão pública de opiniões, não existem razões que justifiquem a restrição da liberdade de cada indivíduo opinar e julgar segundo a sua própria convicção ou consciência, na medida em que, em matéria de expressão, não necessitamos de recorrer ao mecanismo do autogoverno que é a regra da maioria, pois estamos aptos para conviver facilmente com o conflito de opiniões. Assim, qualquer regime democrático que restrinja a liberdade de exprimir determinadas opiniões está a atentar contra os próprios fundamentos da sua legitimidade. A liberdade de expressão é, por este motivo, um pressuposto necessário da legitimidade democrática, isto é, o fundamento mais profundo do nosso modo de vida coletivo. Nestes termos, a proteção da liberdade de expressão pode (e deve) ser entendido (contrariamente ao que acontece, v.g., com a ação direta – um direitos afirmativo) como um direito negativo, na medida em que exige simplesmente que o governo se abstenha de limitar a expressão. Na sua grande maioria, em democracia, as autoridades não se envolvem (e, como temos vindo a alertar, não devem envolver) no conteúdo do discurso falado ou escrito na sociedade. A liberdade de expressão é um direito fundamental, porém, como já vimos, não é também absoluto, e não pode ser usado para justificar a violência, a difamação, a calúnia, a subversão ou a obscenidade. Assim, de acordo com os ditames dos documentos internacionais e/ou regionais analisados, constatamos e só podemos concluir que as democracias consolidadas geralmente requerem (ou apenas poderão requerer) um alto grau de ameaça para justificar a proibição da liberdade de expressão que possam incitar a violência, o ódio racial ou étnico ou mesmo pôr em causa outros bens.

Posto isto, não será arriscado assumirmos que existem, pelo menos, alguns tipos principais de exceção legítima ao regime da expressão protegida que importa, nesta fase, salientar: i) a afirmação de factos falsos ou inventados, designadamente por órgãos de informação, pois correspondem à violação de um dever de honestidade no espaço público; ii) a utilização da linguagem para injuriar indivíduos ou grupos, ou seja, não com a intenção de comunicar um facto ou opinião, mas com a finalidade única de ofender; iii) a utilização da linguagem para causar efeitos na ordem material, como a afirmação falsa de que existe um explosivo numa sala em aulas apenas com o intuito de provocar o pânico ou incitar à violência; iv) a expressão de certos factos ou opiniões no âmbito de uma relação de autoridade (e.g., superior hierárquico/funcionário) somente com a intenção de explorar perante uma audiência a posição de subordinação do interlocutor e, v) devassa de aspetos da vida pessoal que não têm a menor relevância pública.

A liberdade de expressão, princípio aceite como costume internacional e garantido como direito civil mediante tratados internacionais de Direitos Humanos e, considerando que sendo os casos de violação deste princípio submetidos aos órgãos de proteção dos Direitos Humanos, impõe-se à responsabilidade de todos os Estados em garantirem igualmente esse direito ao mais alto patamar, isto é, a nível constitucional, dentro das suas fronteiras internas. Apesar disso, em pleno de século XXI, muitos Estados ainda restringem ou limitam a liberdade de expressão privando os seus cidadãos de fazerem uso pleno deste direito fundamental.

É impossível a construção de uma sociedade democrática sem a liberdade de expressão como direito fundamental de seus cidadãos, pois ambas se correlacionam, no entanto, o grande desafio para qualquer democracia é encontrar o equilíbrio, isto é, defender a liberdade de expressão (e de reunião ou manifestação) e em simultâneo impedir um discurso que incite à violência, à intimidação ou à subversão.

Portanto, uma manifestação pura da degradação que se conclui a propósito da perceção do princípio da liberdade de expressão é que, atualmente, como salienta Gonçalo A. Ribeiro num artigo de opinião que dedicou ao tema em 2015, se consome muito tempo e energia intelectual na enumeração e análise das exceções ao princípio do que com o exame ponderado dele mesmo. Assim, ao invés deste ataque insidioso à liberdade de expressão, parece-nos ser mais vantajoso analisarmos e ponderarmos o modo como o espaço público deverá ser regulado para que todos possam ter a oportunidade de livremente exprimir as suas opiniões e convicções por forma a que a informação seja independente de interesses organizados cujo objetivo passa muitas vezes por, apenas, condicionar a opinião pública. A liberdade de expressão não é apenas mais uma liberdade, é apenas a Magna das Liberdades.

São Tomé, 12 de setembro de 2016

Artigo em PDF »ensaio-sobre-o-alcance-da-liberdade-de-expressao_na_ordem_juridica_internacional_12_9_2016

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