JUSTIÇA E CORRUPÇÃO

Por Hilário Garrido


Já fiz uma abordagem sobre a corrupção no tema “Novidades do Novo Código Penal II”, não tanto refletindo sobre as normas em si, em que anunciei as diversas modalidades de crimes que, 
grosso modo, se designam de corrupção. Uma linguagem até social e jornalística. Mas vou repisar nessa matéria numa imbricação com a justiça. Daí que peço indulgência por esta repetição que não é, ainda assim, “chapa” da anterior.

Corrupção é um fenómeno corrosivo para qualquer sociedade. Ela corresponde a propensão nefasta do homem para obtenção de vantagens de natureza essencialmente económica ou patrimonial de forma ilícita através de aproveitamento dos mecanismos e serviços do Estado. Eis porque tecnicamente a corrupção é um crime apenas praticado pelos funcionários ou todos os servidores do Estado na terminologia do Código Penal que define o conceito de “funcionário” (artigo 469.º).

Porque esta definição não abrange os titulares de cargos políticos, que são pessoas com maior responsabilidade na vida do Estado e uma classe onde há mais vulnerabilidade de prática desse tipo de crime, e porque parecia deixar intencionalmente impune esta “nobreza” (porque lei especial podia não sair e a maneira da terra…) o Código Penal deixou uma brecha para responsabilização dessas individualidades em matérias que são típicas de quem exerce altas funções públicas e políticas, como são a corrupção, o peculato, a prevaricação, abuso de poder,  e vários outros.

Destaco os novíssimos crimes deSuspensão ou restrição ilícitas de direitos, liberdades e garantias”, “Coação contra Órgãos Constitucionais” “Desacatamento ou recusa de execução da decisão de Tribunal”, “Violação de normas de execução orçamental e de princípios e regras de contrato público” e participação económica em negócios” que, a meu ver, serão quase letra morta, porque, se nem há condições na máquina judiciária parase atacar outros crimes como serão tratados estes, repito, novíssimos crimes? Regozijo, contudo, com esse formalismo criminal. É bem-vindo para um dia o país vir a melhorar.

O Legislador parece gostar de “ter coisas no papel”numa espécie de fazer de contas, como que para o marketing da vida política do Estado. Mas vamos nos regozijar e dar boas vindas a esses crimes. Quiçá um poder político cuidará disso como é dever e maravilha na vida pública, dando cobertura aos princípios e valores transparência, probidade e integridade da vida pública.

Foi com base nessa remissão do tal artigo 469.º do Código Penal que felizmente foi publicada a “LEI DE RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL DOS TITULARES DE CARGOS POLITICOS” (Lei n.º4/2014, publicado no Diário da República n.º 152, de 17 de Novembro de 2014), onde estão contemplados tais crimes, em especial o da corrupçãopeculato e outros ainda que são típicos desses cargos e que têm uma penalização maior, o que bem se compreende face ao dever de serem exemplos em termos de moralidade e ética na gestão da coisa pública.

Sugiro a leitura dessa lei por suscitar curiosidade dos cidadãos quanto ao escrutínio daqueles que têm a responsabilidade primeira de ser exemplo, na medida em que os políticos são entidades que ascendem normalmente a altas funções do Estado por via de eleição, que é a forma sublime de legitimidade. Há muitas novidades nela!

O CAPITULO IV do Código Penal – “DOS CRIMES COMETIDOS NO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PÚBLICAS” prescreve as três formas de corrupção: Artigo 452.º “Corrupção passiva para ato ilícito” que tem uma pena que vai de 2 a 6 anos (n.º1) e com pena diminuída até 3 anos ou multa até 300 dias se o ato não for praticado – forma atípica de dizer tentativa, a meu ver (n.º2).

Nesta corrupção passiva, o n.º3 desse artigo prevê uma redução de pena até 2 anos ou multa até 200 dias para o caso de n.º 2 desse artigo, e redução até 1 ano e 100 dias de multa, respetivamente, se houver a chamada omissão que é a forma de cometer um crime através de uma postura ou comportamento de abstenção (ou deixar) de fazer qualquer coisa e o crime se consumar, ou até “demora na prática de ato relacionado com as suas funções”.

O deixar de fazer algo e resultar em crime é, como se compreende, intencional (dolo, vontade de não fazer alguma coisa para que haja um resultado criminoso que podia ser evitado com uma ação); um exemplo é após um atropelamento o condutor comete o crime de dever de auxilio se deixar morrer, não fazendo nada para o salvamento e a vitima acaba por morrer; isso é cometer um crime por omissão.

Os n.ºs 4.º e 5º desse artigo 452.º ainda prevê benevolências (para mim incompreensíveis mas aceitáveis) que são situações em que o corrupto repudia a promessa oferecida e aceite ou reponha o dinheiro ou o valor da vantagem patrimonial recebida, antes da prática do ato ou da omissão ou demora, em que a pena é dispensada, ou seja, não é penalizado, mas sempre com um processo criminal e normalmente em fases em que forem apuradas essas situações.

Entendo, que essa dispensa de pena é apurada no julgamento, porque esse crivo processual todo até esta fase já é uma “penalização”; é estigmatizante!

Isso lembra-me a nova ideia que há em Portugal de os corruptos puderem ver-se livres de prisão se mostrarem arrependimento e repor o valor em causa. São mutações jurídico-sociais que a política abraça.

Será bom aos leitores não juristas (porque não juristas!) consultarem esses artigos do Código Penal, como aliás todos os cidadãos devem fazer em relação a qualquer lei para ser pelo menos informado, porque o C.P. é uma lei como qualquer outra em sentido geral.

Aliás, como já alertei, o artigo 6.º do Código Civil diz que não se pode dizer que não se sabia da existência de uma lei e é por isso que se cometeu este ou aquele ato ilícito, sobretudo o crime que implica prisão, embora o próprio Código Penal tenha uma norma relativamente contrária que fala de “falta de consciência da ilicitude” para efeitos do labirinto jurídico em sede penal, com base na falta de culpa” (artigo 17.º – “Erro sobre a ilicitude”).

O artigo 453.º refere-se à “Corrupção passiva para ato licito”. É este tem uma pena suave que vai até 1 ano ou multa até 100. Como a seguir vou tentar explicar, um ato licito é aquele que não viola a lei. Neste caso o funcionário recebeu vantagens indevidas, mas praticou um ato que está dentro da legalidade. Eis a razão que penso ter levado legislador penal a castigar menos aqueles funcionários que cometem crime de corrupção, praticando ato legal. A evidência dessa suavidade parece ser que o ato é legal, mas não pode ficar impune, para bem da integridade pública, que é um dos bens jurídicos que as normas de corrupção protegem. Mal seria se todos aqueles que praticam atos legais recebessem contrapartidas, compensações… que Estado teríamos!

Mas quando a corrupção se baseia num ato ilegal, ilícito, a penalidade deve ser mais grave, obviamente!

A “Corrupção ativa” vem prevista no artigo 454.º também com as suas vertentes. Tem uma penalização igual e nos moldes da corrupção para ato ilícito prevista no artigo 452.º que prevê uma pena de 2 a 6 anos e subsequentes atenuações.

O n.º 2 desse artigo 454.º prevê apenas penas de multa que vão de 10 milhões a 500 milhões de dobra, para situações em que os crimes de corrupção são praticados por pessoas coletivas (empresas, ONG’S etc.) ou seus representantes, podendo essa penalização incluir a dissolução da entidade, ou seja sua extinção; deixa de existir tais entidade por decisão judicial.

A corrupção ativa tem a mesma dose de censurabilidade e reprovabilidade de toda a sociedade porque são atitudes que atentam contra a integridade e probidade públicas de forma grave.

Ora, importa reter as ideias mestras nessas três formas de corrupção: “passiva para ato ilícito”, “passiva para ato lícito” e simplesmente “passiva”.

Passiva, desde logo, tem a ver com a ideia de o corrupto praticar um ato, a sua “solicitação” ou aceitação e que o ato seja praticado em benefício de alguém, sem que seja devida uma vantagem qualquer. Ou seja, é ele ou interposta pessoa que pratica ato por sua iniciativa, “contrários aos deveres do cargo”. Por exemplo aprovar um projeto, conceder um alvará ou licença, tomar uma decisão judicial ou não, praticar em geral, um ato na Administração Pública, por sua iniciativa própria. Não lhe foi pedido; é ele, o corrupto, que toma a iniciativa de conseguir vantagens e facilitar terceiros.

Ato lícito é o ato é praticado para beneficiar outrem implicando contrapartida. Esse ato é praticado dentro do quadro legal, ou seja, não viola a lei. Só que não é permitido (é crime) praticar um ato mesmo que não viole a lei para se receber contrapartida, como são as famosas comissões que até uns ingénuos acham normal, quando não é devida, sobretudo ao próprio Estado.

Ato ilícito, este sim, é violador de lei (ilicitude), como se verifica abundantemente em países com mais ou menos impunidade; sobretudo na Administração Pública em que os altos responsáveis atropelam a lei “a torto e a direito”.

 

Portanto, todas as engenharias ou engenhocas que os funcionários/servidores fazem na vida do Estado para aproveitar ou subtrair dinheiros e seus bens não são, tipicamente para o direito e a justiça, corrupção. Esta é o que consta nos artigos 452.º a 454º do Código Penal acima desenvolvido. Os restantes artifícios que os servidores do Estado praticam para se “safar” na vida tem outro nome técnico-juridicamente.

Um exemplo é o crime de peculato – de que já falei também – e que consiste em se apropriar ilicitamente de bens públicos, dar destino diferente em seu benefício ou de terceiros, o dinheiro público ou qualquer coisa pública (artigo 456.º C.P.) Isso não é corrupção.

O crime de peculato tem várias modalidades previstas nos artigos 456.º a 458.º, nomeadamente, as vertentes de “Peculato de uso” e “Peculato por erro de outrem”.

Dentre esses crimes todos do capítulo sobre “Crimes cometidos no exercício de funções públicas”, vê-se encaixado no artigo 455.º de forma como que sorrateira, o famoso crime de “enriquecimento ilícito” de que também já me referi e de que tratarei numa próxima novidade, e que revela como o nosso legislador faz leis sem estudo prévio, auscultação de autores próprios, sem existência de uma comissão especializada encabeçada por jurista altamente qualificado, de preferência um doutorado bem reputado, etc.

Porque este crime de enriquecimento ilícito foi trazido para aqui porque se ouviu falar lá no além-fronteiras, nomeadamente, Portugal em que foi uma ideia tão infeliz que o Tribunal Constitucional já chumbou por duas ou três vezes, inclusive na vertente “sofisticada” e “encapuçada” que a coligação PSD-CDS reformulou e que teve o último nome de “ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO”. Provavelmente hão de mudar o nome também aqui!

É tão infeliz inventar-se esse tipo de crime que em país nenhum com sistema que eu chamaria de “jurídico-lusófono” isso é aplicável. Isso porque, e essencialmente, o processo para se responsabilizar alguém desse crime implica a violação dos princípios sagrados de presunção de inocência, direito ao silêncio, o ónus da prova que em processo penal consiste em ser o M.P. quem tem que provar o que acusa e não o arguido, tudo com cobertura constitucional e outros direitos conexos com a liberdade e dignidade das pessoas. Não se pode obrigar as pessoas a dizerem como adquiram as coisas.

O atual processo penal, como já disse, que é sustentado pela Constituição tem uma orientação que não permite o avanço de uma hipotética investigação ou de um processo todo com atropelo às normas, os princípios e valores constitucionais que são essencialmente o ónus da prova e apresunção de inocência.

O Tribunal Constitucional português chumbou isso tudo por essas razões. Este nosso preceito criminal é uma letra morta porque, nem aqui isso é possível avançar, porque em concreto, já que não houve fiscalização preventiva, será chumbada na fiscalização concreta e pode também ser inconstitucionalizado em sede de fiscalização sucessiva abstrata, ao impulso das entidades legitimas previstas no artigo 147.º da Constituição. Se eu fosse uma dessas entidades teria dado trabalho já ao Tribunal Constitucional!

Se houver um processo de crime de enriquecimento ilícito terá de haver inversão do ónus da prova que está plasmado no Código de Processo Penal, porque há que perguntar ao arguido como adquiriu os bens e ele obrigado a responder, quando a regra é de o M.P. é que deve provar que os bens foram ilicitamente adquiridos.

Ora, se há ilicitude na aquisição dos bens, então o que se deve fazer é proceder a investigação que por natureza é discreta e secreta para se apurar a ilicitude dessa aquisição, como por exemplo o crime de corrupção que permite o corruptor obter valores exorbitantes para tal aquisição, o mesmo se dizendo do crime de trafico de droga, branqueamento de capital vulgarmente chamado de lavagem de dinheiro, e, pela via de o ónus da prova pertencer ao M.P., como de resto se passa com todos os crimes ou em todos processos criminais, responsabilizar os supostos “enriquecidos ilicitamente”.

Com todo o respeito por todos os académicos, juristas e políticos que conceberam esse tipo de crime, penso ser fútil esta via criminal.

E há varias formas de se delapidar o Estado! Desvios sofisticados dos bens e dinheiros; “traficância” de terrenos públicos etc., “tráfico de influência”, “participação em negócios” como existem noutras paragens etc. São várias formas em que o Estado é prejudicado e que pode ser combatido mesmo com justiça administrativa ou penal.

Genericamente, ou até, politica e socialmente, chama-se corrupção a tudo isso. Técnico-juridicamente as coisas são outras: corrupção é corrupção, peculato é peculato, sendo todos formas de sugar o Estado. Mas corrupção tem contornos muito sofisticados e de difícil descoberta. É mais difícil provar um crime de corrupção que o de peculato, porque neste dá-se conta da falha de dinheiro, e buscam-se as razões e os responsáveis.

Há muitas formas de “matar as moscas” no que toca a delapidar o Estado ou suga-lo.

Sendo nefasta, porque corrosiva, ela deve ser contrariada, ou melhor, combatida pela própria sociedade, através das instituições judiciárias do Estado.

Do ponto de vista da justiça para o seu combate, comparo isso ao sistema imunitário do nosso organismo. Quanto menos imunidades tivermos (ausência de mecanismos, instituições sérias, quadros competentes, etc.) mais ela avança, tal como se passa com o caso do vírus da sida.

Em outros países até criam-se serviços especiais para combater corrupção, mas entendo ser fútil ou gasto de dinheiro público desnecessário com mais instituições, em vez de aperfeiçoar o atual sistema de justiça, desde a “Policia Judiciária! (PIC), passando pelo Ministério Público, os Tribunais e, obviamente, formação de quadros, etc.

Convivo mal com essas pseudoformações de dois, três dias ou um mês e que mais resultam em gastos com os formadores que até agradecem. As formações devem ser sérias, contínuas e até permanentes, para não dizer, a longo prazo, de formações superiores. E se possível com estímulo para os formandos.

A título de exemplo, falando da incipiência do nosso sistema judiciário ou institucional geral, pergunto: STP tem algum médico-legista!? Há especialistas no domínio económico-financeiro e informático vocacionados para investigação de crimes económicos em geral como branqueamento, fraudes fiscais, a corrupção, crimes transnacionais etc., e o próprio “amorfo” e “inatacável” crime “ENRIQUECIMENTO ILICITO” do artigo 455.º, etc.!?

Todos sabem que não, mas vamos “existindo mesmo assim” como dizem os angolanos (“tamos a subir mesmo assim”).

Sem falar de preparação para ligar com outras grandes criminalidades como tráfico de droga, de arma etc. Haverá aparelhos para análise de materiais apreendidos aos arguidos para só depois apresentar ao MP e pior ainda os tribunais? Talvez não! Como Juiz de Instrução Criminal, nunca ouvi falar disso. E se alguém é detido com alguma substância e se não houver análise laboratorial que certifique que é droga, necessária e indispensavelmente, as autoridades judiciárias devem pura e simplesmente libertar o arguido.

Um elemento fundamental no combate à corrupção é a comunicação social. Quando ela é efetivamente livre, num país onde o acesso às fontes não tem barreiras, porque a vida do Estado é e deve ser transparente, sob pena de haver uma pseudodemocracia ou Estado de Direito, em que o direito à informação e ser informado é um direito fundamental, funcionando a comunicação social de investigação, séria, sem gentes que se autocensuram ou são bluffs de jornalistas, muitas coisas são descobertas e denunciadas, sem medo (o que é difícil em STP). Há uma espécie de “cada nguê ca vijubuê dê”, o que é nefasto para o país.

Porque, se não houver um sistema de justiça penal minimamente capaz, qualquer sociedade está condenada ao fracasso e consequentemente ao subdesenvolvimento.

Quão frágil é o nosso sistema de justiça e quão pródiga é o nosso sistema jurídico! Quão frágil e incipiente é as nossas instituições públicas… pelo menos a maioria!

Quando falo de sistema de justiça estou a referir-me a todas as instituições que contribuem par a realização da justiça, portanto, estou a falar não só dos Tribunais e o Ministério Público, mas também das Policias, com maior enfase para a Policia de Investigação Criminal que – nunca me cansarei de dizer – devia designar-se POLICIA JUDICIÁRIA que é a nomenclatura que tem abrangência de uma instituição vocacionada para ser um órgão do aparelho judiciário. Polícia de Investigação Criminal – com todo o respeito que tenho pelos países que adotaram essa designação e pelos criadores desse conceito ou terminologia, tais como Angola, Moçambique, incluindo STP – parece vocacionar-se mais para investigar e não para uma participação formal e efetiva na realização da justiça.

Como observamos, a nossa PIC tem falta de condições extremas: desde quadros qualificados (não basta ser formados, é preciso tarimba ou calibragem para ter competência suficiente), a própria falta de formação séria, eficaz e permanente, falta de materiais de todo o tipo, falta de equipamento de toda ordem, de meios rolantes, meios técnicos e científicos (laboratórios, com destaque para o laboratório de policia científica como no mínimo se vê em Cabo Verde), com o cúmulo de nem haver um médico legista, muito menos uma instituição de medicina legal – Instituto de Medicina Legal (será pedir demais!), falta de condições de trabalhos para os funcionários, com o cúmulo de salários de miséria para pessoas que estão incumbidas para combater crimes de toda a natureza, sobretudo os económicos – daí a vulnerabilidade para corrupção, em que estão todas as instituições, incluindo os próprios tribunais que, a final, dizem se há ou não crime de corrupção… enfim, é STP, malgré tantos “vamos fazer”, “reformar”, “dar condições para”, uma espécie de “é agora!”etc… linguagem politica de todos os tempos!

Quão frágil é o nosso sistema de justiça: que condições há nas nossas instituições judiciárias, a começar pela PIC e o MP que são as duas instituições cujas ações são impulsionadoras no combate a corrupção.

Frontalmente falando, havendo corrupção em qualquer serviço ou instituição do Estado – porque ela só existe no sentido técnico-jurídico-penal dentro do Estado – não se pode combate-la, por outras palavras, não há justiça contra corrupção, porque é o próprio Estado através dos seus órgãos que deve combate-la! Talvez seja forçoso concluir isso! Paradoxo!? Não! É uma questão de dignidade existencial de um Estado.

E é bom vincar que, embora os tribunais sejam, em última instância, a única entidade que formalmente declara de forma publica que este ou aquele cidadão cometeu um crime de corrupção, o que faz após o julgamento com sentença transitado em julgado, pelo sistema processual penal, enquanto o MP e a PIC, (ou pelo menos o MP), não fizerem o seu papel de agir ou acionar os mecanismos judiciários e policiais para atacar ao mínimo sinal, a corrupção que é denunciada ou de que tenha conhecimento diretamente ou por intermédio de terceiros, especialmente a nível da comunicação social, os tribunais nada podem fazem. Há primeiro que haver ação das Policias e do MP para que os casos cheguem aos tribunais a “pedido” deste em forma de acusação.

Isto é a regra básica da justiça penal.

Os tribunais, pela natureza das suas funções determinadas pela lei, nunca podem intervir no combate à corrupção sem acusação e normalmente é precedido de ação da polícia judiciária. E isso corresponde ao chamado princípio dispositivo que até está consagrado do Código do Processo Civil que é aplicável subsidiariamente no Código de Processo Penal, o que é mundial ou melhor dizendo, ocorre no chamado direito comparado que significa que existe em quase todas as legislações, pelo menos as civilizadas. “Civilizadas” no sentido de respeitabilidade pelos direitos homem e o próprio Estado de Direito em que a pessoa é o centro de tudo… e quando se fala de julgamento estamos a falar de pessoas!

A opinião pública não informada sempre acusa os tribunais de nada fazerem perante tanta corrupção que se diz existir no país, o que não é justo. Porque mesmo vindo a ser absolvido e mandado em paz quem foi acusado de crime de corrupção por aquelas instituições anteriores, o papel do Estado foi cumprido.

O importante é demonstrar que, ao mínimo sinal de corrupção, há que agir até ao ponto que for necessário, pois o processo penal tem várias fases, podendo um caso terminar mesmo na fase de instrução preparatória, sem acusação, quando o M.P. conclui que, afinal, os indícios não são suficientes ou consistentes para uma acusação e arquiva o processo.

No final de instrução contraditória que culmina com o debate instrutório em que se conclui que a própria acusação não tem consistência perante os elementos de prova levados para esta fase intermediária do processo penal e o juiz decidir pela “não pronúncia”, o que significa que o processo não deve seguir para o julgamento; havendo “pronúncia”, no próprio julgamento em que se produz a melhor prova porque envolve muitos intervenientes (o Juiz, o Réu, o Procurador da República, testemunhas, declarantes, eventualmente peritos, para além de ser um ato público – todo e qualquer cidadão pode assistir, salvo se houver proibição pelo juiz em casos especiais, por exemplo que tenha a ver com intimidade das pessoas etc.) e tudo o que o Juiz achar necessário para produção de melhor prova e concluir pela culpabilidade ou não do arguido.

E ainda, até ao transito em julgado da decisão dos tribunais de primeira instância que possa ter condenado alguém, o caso pode “morrer”, porque o Supremo Tribunal de Justiça pede vir a anular uma sentença condenatória.

O julgamento no Supremo nunca poderá condenar para mais; só confirmar, alterar ou revogar a decisão condenatória, isto no respeito pelo princípio chamado de “reformatio in pejus” (artigo … do Código de Processo Civil). Se alguém for condenado a dois anos de prisão e houver recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este nunca poderá alterar essa pena para mais de dois anos. Isso tem correspondência com o princípio de proibição de “ultra petitum” em sede de cível (matéria não criminal) que consiste em os tribunais nunca poderem decidir para além do que é pedido. Se o Autor pede a condenação do réu em 50 mil não pode o Tribunal vir a condenar a mais do que isso, ao menos que haja juros sobre esse valor.

Em caso de absolvição, por recurso do M.P., aí sim, o Supremo poderá encontrar provas que levem a condenação.

Retomando a abordagem sobre a fragilidade das nossas instituições, há muito que questionar.

E, em bom rigor, nenhuma das nossas instituições judiciárias está em condições de lidar com este fenómeno com a devida acutilância, pois, assim como se passa com outros crimes, não estamos devidamente apetrechados com meios humanos, materiais, tecnológicos e nem logísticos para uma tarefa dessas.

PIC precisa de gentes qualificadas em várias áreas, assim como o M.P. e os tribunais precisam de melhor qualificação dos magistrados, pois não basta saber direito no sentido lado que é quase a formação que todos possuem, mas sim é necessária uma formação especifica, continua e permanente para além de criação de condições para todas que essas instituições possam se socorrer, como manda a lei, de técnicos de outras áreas para ajudar a justiça a compreender os fenómenos, porque os delinquentes são exímios nessa matéria.

Aliás se falarmos dos crimes de corrupção, falsificação de notas, branqueamento de capital, criminalidade organizada, vemos que os prevaricadores não são ingénuos, nem idiota. São normalmente bem especializados e muito inteligente.

Há técnicos devidamente qualificados a altura de investigar os grandes crimes de corrupção, lavagem ou branqueamento de capital, crimes organizados, falsificação de notas, etc. etc.? Há um sistema devidamente informatizado nas nossas instituições para combater esses crimes? Há um corpo de técnicos preparados na área económica, auditoria, contabilidade, informática, etc. Há laboratório como existe em Cabo Verde, o chamado Laboratório de Policia Científica?

Há meédico legista devidamente especializada (Medicina Legal) para lidar com crimes contra a vida e a integridade física, os tais que avaliam o grau, o tipo e as características de uma lesão ou as causas de uma morte e suas consequências?

Não tenho a veleidade de esperar que tivéssemos uma instituição grandemente dotada nesses domínios. “Anca glange cóbó glangi; anca txóco, cóbó txóco”, como diz o Povo. Não temos que ter aquilo que os outros têm;  o que seria ideal! Mas temos algo parecido? Não estou a esperar que tenhamos um instituto de medicina legal; mas devíamos ter um mínimo que corresponde a essas estruturas, para fazermos algo nesse domínio, assim como o laboratório de polícia científica.

Exemplos caricatos que ocorrem neste país: O polícia interceta um cidadão a fumar algo que não é efetivamente cigarro ou tabaco conhecidos a olhos nus; o “gajo” está fumar, porventura umas palhas ou folhas que lhe dás prazer e que o sacia como tabaco, porque até pode não ter dinheiro para comprar. O polícia, todo zeloso, detém-no, apreende o que ele estava a fumar (ou até pode ter apenas na mão!), cheira eventualmente e tem um cheiro à droga… o quê que se faz ao detido e o produto que ele detém na sua posse?

Normalmente, o que se tem feito é levar o detido para o MP e daí ele vai a Tribunal, acompanhado do produto. Quid júris? O que e como fazer? Não estando nenhuma instituição ilibada dessas anormalidades, já aconteceu neste país,  até da II República o coitando do cidadão que não estava a fumar droga nem a tinha na sua posse vai preso! Isso é um “crime” que o Estado próprio está a cometer.

Enquanto elemento de prova, o tal produto que o cidadão tinha consigo, em todo e bom rigor da existência minimamente digna de um Estado, tinha que ser analisado num processo laboratorial – para não dizer laboratório que pode significar uma instituição e implicar muito dinheiro – onde se confirma que efetivamente o produto é um estupefaciente (droga).

Caso contrário, nem o polícia podia deter, nem o MP devia deixar passar o “delinquente”, muito menos – aí o cúmulo – os tribunais condená-lo. Grande injustiça praticada pelo próprio Estado!

Isso porque, na essência da justiça, ela só se faz, ou só é justa se a decisão se basear em provas, neste caso científicas, feitas num laboratório por técnico especializado para tal. Há ou houve isso no nosso Estado com um mínimo desse rigor?

Lembremo-nos do caso em que dezenas de pessoas foram detidas porque “estavam a fumar liamba”, ou como já se viu numa notícia, estavam na posse de um produto mais conhecido por liamba (ou a fumá-lo).

Lembremo-nos do caso “A NOSSA LAVAGEM DE DINHEIRO” em que cidadãos passaram pelo crivo estigmatizante de justiça (prisão preventiva inclusive) sob suspeita de terem falsificado notas, quando o malabarismo que se passava era uns a burlar os outros que conseguia fazer multiplicar nota que desse por 10 a mais vezes, numa artimanha de lavar papeis pretos no balde cujo processo até continha detergente de loiça!

Era falsificar notas? Que meios e condições existiam para o efeito. Aquilo foi o que um alto funcionário da Policia Judiciária Portuguesa chamou de “conto do vigário”, o que foi secundado pelo Gerad Saiber, conhecido investigador em estudos africanos, quando comentou as investidas que fiz contra essas atrocidades. E custou-me caríssimo na carreira! Casos similares passaram-se em Portugal, conforme uma decisão judicial que qualificou isso de burla e a que tive acesso, em Cabo Verde e outros.

Mas lá se foi forçando o processo sobre isso e curiosamente um caso consegue chegar ao julgamento. A juíza ficou estupefacta e mandou os arguidos em paz. Todos os outros processos “ficaram em águas de bacalhau”.

Este último reparo é apenas para acentuar as consequências de um sistema judicial que não tem laboratórios como suporte para qualquer processo que carece de certificação de veracidade dos produtos ou substâncias que podem servir de provas.

No essencial, é para precisar a necessidade de se ter no país condições mínimas para se comprovar, para se obter provas verdadeiras e científicas para se qualificar uma situação como crime e responsabilizar os criminosos com todo o rigor da lei.

Assim como a PIC (policia judiciária) também a Policia Nacional que tem uma componente criminal, deve sofrer as devidas reformas e reformulações.

E tudo o que referi sobre a PIC em termos de condições gerais serve para a Policia Nacional. E a ideia é que essa parte do sistema judiciário (órgãos auxiliares de justiça) se apetreche para, com dignidade tratar de todos os crimes como manda a lei, com realce para a corrupção que é matéria central deste tema, porque o que está em causa é a liberdade e a dignidade da pessoa humana que é, afinal, “o fundamento e centro de toda a Ordem Jurídica”, sem prejuízo para a importância de o Estado combater os crimes, nem para os bens jurídicos que esses crimes protegem, no caso da corrupção, a integridade e probidade da vida pública. E o Estado existe para tratar e estimar o cidadão e nunca o contrário como se passa noutras paragens já mundialmente conhecidas.