A Fragmentação da Sociedade Santomense
Uma reflexão sobre as raízes históricas, as desigualdades crescentes e a necessidade urgente de lideranças transformadoras em São Tomé e Príncipe
As Raízes Históricas da Fragmentação
São Tomé e Príncipe nasceu de um encontro profundamente desigual – portugueses, escravos libertos e africanos vindos de Angola, Cabo Verde e Moçambique em condições de servidão. Desde o início, a hierarquia foi a regra. A colónia nunca foi pensada como uma comunidade, mas como espaço de produção e exploração.
Durante os séculos XVII e XVIII, a elite forra – descendentes de escravos libertos e mestiços – foi protagonista da vida económica e política. Eram proprietários de terras, participavam no comércio e disputavam influência com os representantes da coroa portuguesa. Essa elite construiu uma identidade própria e desempenhou um papel crucial na organização da sociedade colonial.
Mas o século XIX mudou quase tudo. A introdução das plantações de cacau e café levou os colonos europeus a apoderarem-se das melhores terras e a dominar o comércio. A elite forra foi afastada do poder económico e político. Os angolares permaneceram isolados, e os contratados vindos de outras colónias ficaram confinados nas roças.
O resultado foi uma sociedade fragmentada e hierarquizada, onde cada grupo ocupava o seu lugar fixo. Os forros perderam poder material, mas transformaram-se num símbolo de resistência cultural – uma resistência que evoluiu, sobretudo após 1953, para uma luta política pela independência, finalmente conquistada em 1975.
A Independência e o Sonho Falhado de Unidade
Com a independência, a elite forra assumiu o poder do Estado. O novo regime de partido único procurou criar coesão nacional, apostando em políticas de educação e cultura para construir uma identidade comum. Mas este desígnio falhou, principalmente pelo carácter autoritário do regime e pelas políticas assistencialistas que não contavam com o envolvimento activo das populações.
A crise económica dos anos 1980 enfraqueceu o regime e abriu caminho para o multipartidarismo. Com a abertura democrática, o país abraçou a economia de mercado na esperança de prosperar. Foi nesse momento que as divisões ganharam força e visibilidade.
A elite forra dividiu-se em grupos políticos rivais, o Estado perdeu autoridade e capacidade de redistribuição, e as desigualdades voltaram a crescer. Dentro dos partidos surgiram facções focadas na conquista do poder através de incentivos financeiros e promessas de cargos. A incompetência tornou-se a marca das lideranças, e a exclusão transformou-se numa forma de estar na política e na sociedade.
A Modernidade Líquida sem Raízes
Como afirmava o sociólogo Zygmunt Bauman, vivemos numa “modernidade líquida”, onde tudo é instável – empregos, laços sociais, certezas. No caso santomense, essa modernidade é ainda mais frágil, porque não se apoia numa base económica sólida nem se enraíza numa cultura local consolidada.
Na modernidade líquida, as relações sociais tornam-se instáveis e os vínculos comunitários fragilizam-se. Família, religião, crenças e raízes culturais enfraquecem. Cada um passa a cuidar apenas de si. O individualismo substitui o sentido de comunidade, e a política transforma-se num campo de interesses pessoais e alianças de circunstância.
São Tomé e Príncipe vive, em muitos aspectos, uma modernidade sem raízes – uma tentativa de ser moderno sem base produtiva, democrático sem cultura cívica consolidada, livre sem verdadeira autonomia.
O Caminho da Reconstrução
Reconstruir o tecido social exige mais do que reformas administrativas ou promessas eleitorais. É preciso reimaginar a sociedade e o seu lugar na história. Isso só é possível com uma consciência histórica capaz de fazer do passado uma fonte de dignidade, do presente um campo de luta, e do futuro um projecto verdadeiramente emancipador.
O desafio de São Tomé e Príncipe é reconstruir o equilíbrio entre o “eu” e o “nós”. Não se trata de negar a individualidade, mas de compreender que ela só floresce em circunstâncias partilhadas. A liberdade perde valor quando não se traduz em bem comum.
Como afirma Bauman, uma sociedade não se sustenta de “eus” que competem – precisa de um “nós” que partilhe destino e sentido. Talvez o maior gesto de coragem nos tempos actuais seja reafirmar a pertença. Reconhecer que salvar as circunstâncias – as instituições, a cultura, o bem comum – é a única forma de nos salvarmos a nós mesmos.
A Necessidade de Lideranças Transformadoras
O futuro de São Tomé e Príncipe depende muito pouco de heróis salvadores, mas sim da força dos laços que nos unem. Depende, sobretudo, de lideranças transformadoras – novos líderes, velhos e novos, com uma compreensão profunda das complexidades do país e do mundo actual.
Precisamos de líderes com humildade para reconhecer que ninguém sabe tudo, ninguém controla tudo. Lideranças capazes de formar e trabalhar com equipas eficazes, plurais, competentes e honestas, guiadas por princípios e valores de bem servir, com transparência e prestação de contas.
Infelizmente, na última década sobretudo, temos sentido a falta de líderes com conhecimento, competência e capacidade de promover a coesão das instituições e apontar novos rumos com um sentido de propósito que una o país e dignifique os santomenses.
Isso não se decreta. É difícil. Mas é o único caminho com possibilidades de nos abrir novos horizontes.
